Contágio (III)
As luzes estavam apagadas, em casa de Henry Rose. Não quis acordá-lo e por isso abri a porta com o meu disruptor. Não deu trabalho algum.
Comecei a procurar Ilia pelos quartos, mas nenhum quarto continha Ilia.
- Maldito drogado, onde é que te meteste agora!
- Não te preocupes com Ilia, Eveready. Onde ele está agora nenhuma droga lhe fará mal.
O sorriso "sincero" continuava a adornar o rosto de Henry, mas eu apenas via traição a bailar-lhe nos olhos.
- Porquê, Henry?
- Porquê? Essa pergunta nem sequer tem razão de ser. Sou um mero empregado que tenta saber o que se passa e faz o que lhe mandam. Não mais que isso, Ever, os porquês não me interessam.
- Já ouvi essa história de uma outra boca. Confesso que me enganaste, Henry. A mim e a todos: apenas um disfarce bem urdido. Também me vais matar a mim, Henry?
- Se não metesses o nariz onde não devias... Agora já cumpriste a tua missão, já não vales um chavo. Dá-me o swapper, Ever.
Comecei a apalpar os bolsos. Grande suíno! Descobri uma coisa pesada e que não me era familiar. Era uma bíblia de alto calibre, o meu caminho para a salvação.
- Toma Henry, toma o teu querido swapper.
No clarão fugaz do disparo só vi os olhos de Henry: não pareciam os olhos de um espião...
Eu tinha perguntas para lhe fazer, mas iria obter respostas? Henry jazia deitado na carpete que fora azul e era agora vermelha.
- Tu... tu nunca trouxeste... armas contigo, Ever...
- Existem hábitos que se perdem. Conta-me Henry: quem está por trás de tudo isto? Melhor ainda: o que é tudo isto?
- Lembras-te da epidemia de 56? – a voz dele tornava-se cada vez mais fraca. – ...Tu és pior que ela...
Ficou a olhar para mim, um olhar inocente apoiado num sorriso sincero. Não compreendia o sentido da sua última frase e dela dependia a minha vida.
A chave de tudo estava na sabotagem do swapper, mas quem o reprogramara? Precisava de um refúgio seguro e só me surgia na mente a loja de Martie Kirkegard.
- São sete crons. Ah, plasticard! – o vendedor de comida meteu o cartão na máquina. Depois voltou-se para mim.
- Este plasticard não presta. Não paga. Dinheiro para mim.
O maldito chinês estaria a enganar-me?
- Não presta, paga em dinheiro ou chamo a polícia!
Agarrei-o pela gola e puxei-o por cima do balcão.
- Ouve bem chinês fedorento: a polícia nunca se chama, aqui. Toma os teus sete fedorentos crons.
Maldita HigherTec! Eles não me podiam fazer aquilo. Ou podiam? Quem faria justiça, se é que ela tinha alguma coisa a ver com isto?
Na rua sete as pessoas apinhavam-se diante dos aparelhos de televisão que transmitiam as notícias de uma das estações locais.
- "...e com estes números elevam-se já a mil e duzentas as vítimas mortais deste estranho caso. O único factor comum às vítimas era o uso mais que regular do swapper. Outro facto estranho foi o de que as vítimas morreram todas durante..."
- Eveready! Não devias estar aqui!
Joe Sarnento Roscoe: um dos maiores chatos que conhecera em toda a minha vida.
- Eles andam atrás de ti, Eveready, toma cuidado!
- Quem é que anda atrás de mim?
- Todos: a polícia, os vigilantes, e uns tipos sem farda que não sei quem são. Parecem ser os mais perigosos.
- "...A HigherTec e a Ultra-Vision negaram peremptoriamente a teoria segundo a qual os acontecimentos se devem a defeitos no produtor de impulsos neurónicos. O Professor Nguyen Kindsey..."
Por vezes os chatos também são úteis.
Nunca serei novamente um homem, mas será que o quero ser? O que é um homem? Valerá a pena ser um homem? O que fizeram os homens de bom, além do pó?
Tenho saudades de quê? Da ausência de vícios, dos meus dentes brancos? Bah... Aparências.
Será da família, será da sua ausência? Eles nunca me apoiaram... Fugiram para Portville e deixaram-me só. Que interessa isso também. Só davam trabalho.
Os dias parecem-me mais curtos, cada vez mais curtos. Tenho medo que desapareçam. Os outros fingem não notar, fingem que tudo está bem, mas eu vejo-os minguar, e ao nascer do sol quase se sucede o seu ocaso... Não vêem isso, imbecis convencidos?
Bem, eu também não tenho a certeza. Pode ser apenas o meu cérebro que encolhe, e com ele vão os meus dias.
Já notaram que os dias estão a encolher? Não, esperem! Já falei disto não falei? Desculpem-me..
Ontem fui passear. Sim, isto é mesmo verdade, mas não sei se foi mesmo ontem.
Fui até ao meu magnífico terraço, atulhado de lixo antigo. Apesar disso, é um bom sítio para se estar.
Conhecem o meu terraço? Não é muito grande, apesar de ser enorme. O tamanho varia conforme a dose que tomei antes. É um bom terraço, o meu. Já conhecem o meu terraço?
"Monólogo de um Mastigador de Pó" - Christopher Pilgrim
Foi difícil chegar à loja de Martie. Os polícias pareciam ter-se multiplicado e eu era agora um homem muito procurado.
Martie escondeu-me nas traseiras, mas disse-me que era só por uma noite. Acho que apanhei a peste...
- Martie, emprestas-me o teu swapper? Não posso utilizar este.
- Vou buscá-lo.
Martie tinha medo. Não o censurava por isso, eu podia estragar-lhe o negócio.
- Dá-me esse swapper assassino, quero estudá-lo melhor. Eu sei que já vi padrões parecidos com os que ele produz.
Dei-lhe o aparelho que matara Lars e fiquei com o dele. Programei-o para uma sessão curta, para me acalmar os nervos. Martie desaparecera no seu laboratório-oficina-habitação.
Sentia-me melhor, bem melhor. Cada vez estou mais convencido que são os excessos que estragam tudo. Se o soubéssemos utilizar com método, o swapper podia ser útil. Martie estava junto de mim, muito agitado, uma agitação quase febril.
- Descobri uma coisa, Gerd. Uma coisa muito importante. Vem comigo que eu explico-te.
Deteve-se na bancada que eu já vira antes, quando ali estivera no dia anterior.
- Vê esta gravação Eveready. – olhei para o monitor. Vi os padrões que se remexiam no écran.
- Isto, Ever, era um pesadelo. Um pesadelo vulgar, daqueles que todos temos uma vez por outra. Agora vou ligar o teu swapper. Vê bem.
No monitor as cores pareciam querer saltar sobre nós e invadir o mundo. Depois Martie colocou os dois padrões no monitor simultaneamente. Eram muito parecidos.
- O que é que vês, Gerd?
- São semelhantes. Até bastante parecidos. Diria que eram idênticos se não fosse...
-...Se não fosse a terrível agitação do padrão proveniente do teu swapper, não é?
- Sim, acho que é isso. – Martie quase saltava, de tão nervoso estar com tudo aquilo. Estava à beira de uma crise.
- Não percebes Ever? – tirou um saco que se encontrava debaixo da bancada e meteu na boca uma boa mão cheia de pó. – Aquilo que matou Lars foi um pesadelo, um terrível pesadelo. Ele morreu de medo... Dá-me o meu swapper, o pó não chega, estou muito nervoso, vou para meu o quarto.
Eu não disse nada. Que podia eu dizer, que tudo aquilo parecia o sonho de um louco? Lembrei-me da luz vermelha do aparelho, da luz de avaria, que se acendera antes da minha sessão. Mas eu não morrera!
- Os padrões variam de intensidade Gerd. Pode não matar à primeira. – a voz dele surgiu do quarto entaramelada pelos efeitos do pó e parecia ter lido os meus pensamentos. Decidi deitar-me, não podia fazer mais nada.
Já seria manhã? Lá fora, no beco esconso das traseiras, não divisei a luz tímida dos dias. Algo me acordara. O grito abafado fez-me levantar de um salto.
- Martie!
A cabeça estava já completamente ensanguentada, mas ele continuava a bater com ela na parede, uma e outra vez, os braços balouçando com a fúria, como se estivessem quebrados.
- Martie, pára! – Tentei segurá-lo mas o corpo franzino parecia dotado de uma força sobre-humana. A força do medo, pensei.
Consegui agarrá-lo pela cintura mas, nesse preciso instante, o corpo tornou-se inerte.
- Martie, fala comigo Martie!!
Martie não falaria com mais ninguém...
O dia estava cinzento, como todos aliás, e a minha disposição ainda lhe realçava a cor parda.
Quantos morreriam mais?
A peça chave, a que juntou todos os pedaços dispersos e incompreensíveis, só a tivera na mão na noite anterior. Surgira-me clara da morte horrível de Martie, iluminando a noite. Na minha cabeça uma palavra mantinha-se acima de todas as outras: genocídio!
Era agora claro que ninguém mexera no nosso swapper, nem no de Martie. Ou melhor, a única pessoa a tocar-lhe e a usá-lo fora eu! Gerd Makint, sabotador de swappers, assassino involuntário de inúmeras pessoas. Um novo chip de controlo... Uma grande mentira, fora apenas isso. Eles tinham-me tornado contagioso, de uma maneira que eu ainda não conseguira perceber: a minha implantação parecia reprogramar os swappers e torná-los mortais para os outros, mas eu nada sofria. O veículo de transporte da epidemia não podia morrer e esse veículo era eu. Mas tornara-me incómodo, tornara-me um alvo a abater.
Depois de ter morto tantas pessoas involuntariamente, apetecia-me matar algumas de livre vontade, mas para alcançar o meu objectivo tinha de sair da cidade inferior e isso não era fácil. Façam o que quiserem na vossa pocilga, mas nunca saiam dela...
Do sítio onde me encontrava ainda via o vulto, mas as letras não se viam dali. O edifício mergulhava nas nuvens baixas, parecendo alcançar o céu. Pelo inferno que tinha criado, a HigherTec havia de pagar.
[...] e o problema do homem tornara-se cada vez maior. Ninguém lhe atribuíra tamanha responsabilidade, mas ele sentia ser sua obrigação, seu dever, tomá-la entre mãos e levar tudo a bom termo.
Fora sempre um funcionário apagado, perdido entre as mil coisas que tinha de fazer em tempo algum. Poucas esperanças lhe restavam agora de fazer uma coisa que o distinguisse entre todos.
Trabalhou muito e fez muitos sacrifícios. Privou a família da sua companhia e de outras coisas mais materiais, mas o objectivo estava quase alcançado, o triunfo estava perto!
Era o grande dia! O seu rosto era o rosto do cansaço, mas por dentro sentia-se iluminado por uma nova força. Foi então que o esforço pediu contas e o coração não lhe pôde pagar... Caiu fulminado no chão do corredor e viu a glória fugir ao mesmo tempo que a vida. O chefe gostou muito do seu trabalho e ficou também com o mérito. O sentido do dever matou o sentido da vida há muito tempo...
"Monkey Business and Other Stories" - Thomas Nachtflug
Encontrarei alguma vez os culpados? O gigantesco complexo erguia-se mesmo diante de mim. Conseguira sair da cidade inferior à custa de umas quantas cabeças partidas e da roupa pedida emprestada a um vigilante azul.
O mais sujo está mais acima: ali na HigherTec essa máxima parecia verdadeira, e tornava a minha tarefa mais difícil. Arranjei uma pasta na casa de banho. Não sei quanto tempo o dono levaria a abrir a fechadura que eu encravara. Não me vira e isso era essencial.
- Alto! Identifique-se!
Mostrei-lhe o cartão falso que Rudie me arranjara. Rudie Kol era o melhor falsificador da cidade inferior e devia-me vários favores; fornecera-me o cartão alterado em duas horas.
- Tenho de entregar estes documentos na administração. – mostrei-lhe a pasta. Ele olhou mais uma vez para o cartão e deixou-me entrar no elevador expresso.
O corredor estava como eu me recordava dele, da outra vez em que ali estivera: paranóicamente limpo. A limpeza não era a única coisa paranóica por ali. Comecei a ler os nomes nas portas, tentando encontrar um conhecido.
"Lésinne Huyitt – Directora de Operações Especiais", dizia a pequena placa na porta. Eu fora uma operação especial... Não bati quando entrei.
Ela estava sentada na secretária, voltada para a porta, e tinha uma arma apontada a mim.
- Eveready! Você conseguiu chegar aqui, parabéns.
- Como ?!?...
- Como sabia que vinha aí, é isso que quer saber? O corredor tem câmaras, senhor Gerd Makint... Por pouco não me apanhava aqui. Sabe que são horas de almoço, não sabe?
- Ainda me deve um almoço, lembra-se?
- É pena, porque não terei oportunidade de lho oferecer. A sua vida está muito próxima do fim...
- Se vou morrer, ao menos diga-me porquê.
- O último pedido do condenado à morte... Se tivesse ficado quieto ainda agora estaria a chafurdar na cidade inferior, feliz da vida. Mas está bem, vou-lhe contar. A ideia não foi minha, foi dos patrões, aqueles que nunca se vêem. Decidiram que o mundo estava decadente e que era necessário fazer algo. Eliminar os decadentes pareceu-lhes uma boa ideia.
- Foram vocês que tornaram o mundo assim.
- Não me interrompa! Era preciso arquitectar uma maneira limpa e que não incriminasse de maneira nenhuma a companhia. Quer algo mais limpo que um vírus electrónico? Foi isso que lhe implantámos, Gerd; um chip que infectava todos os swappers que você utilizasse. Os mais viciados, os mais decadentes, seriam fulminados; os outros aguentar-se-iam mais um tempo.
- Agora já sou dispensável...
Ela soltou uma gargalhada.
- Meu caro Gerd, você foi sempre dispensável! Por acaso pensava que só a sua implantação foi alterada? Existem centenas como você, em todo o mundo. Será uma epidemia fulminante e o mundo ficará mais limpo. – ela baixara a arma na descontracção da conversa.
- Sim, ficará mais limpo...
Não teve tempo de gritar. O rosto lindo estava crispado pela dor e os cabelos louros tinham manchas de sangue. Ela olhou para mim.
- É pena, Lésinne Huyitt, podíamos ter sido amantes... – antes de sair atirei para cima do corpo um plasticard de nível médio e dez crons em moedas.
- Adeus Lési.
Aquele não fora apenas mais um engate...
Dirigi-me para o terraço do edifício e corri para um dos aerocarros estacionados. Liguei o piloto automático e desliguei o rádio-controlo para evitar interferências. Quando saísse para uma zona com menos tráfego conduzi-lo-ia eu.
Neste mundo o futuro é sempre sombrio e a esperança parece ter morrido numa das muitas guerras que se travaram antes do Tratado do Mundo Comum.
Atravessei a última camada de nuvens baixas e vi-me num outro mundo.
Aqui, onde o sol ainda brilha com alguma dignidade, tudo parece ter solução, e a cidade lá em baixo, oculta pelas nuvens negras, parece pertencer a outra dimensão.
No monitor da traseira três sombras negras transformaram-se em aerocarros da polícia.
Desliguei o piloto automático e tomei os controlos nas minhas mãos.
FIM
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